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Cidades agridem a paisagem tentando expulsar moradores de rua

Cidades agridem a paisagem tentando expulsar moradores de rua
Um Projeto para a Reconstrução do Brasil

Chamada ‘arquitetura hostil’ é utilizada para afastar pessoas em situação de vulnerabilidade e gera espaços inviáveis para uso social 

A paisagem das cidades brasileiras está ganhando cada vez mais a aparência de um cenário de guerra. São recursos instalados em espaços públicos como pedras, blocos de concreto ou objetos pontiagudos, que transformam os locais em espécies de trincheiras. Muitas vezes as praças vão sendo gradeadas e os bancos perdem o encosto para ninguém ficar muito tempo. Em alguns lugares, jatos de água caem das marquises para espantar quem quiser permanecer embaixo. 

Esse tipo de artifício tem recebido o nome de arquitetura hostil, apesar de não obedecer a nenhum princípio arquitetônico voltado para o embelezamento ou melhor aproveitamento dos espaços urbanos. Além de esteticamente condenáveis, essas construções têm como único objetivo afastar pobres e pessoas em situação de vulnerabilidade social de utilizarem o espaço público. Agora, uma lei promulgada pelo Congresso tenta pôr fim a essas agressões paisagísticas.

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Padre Júlio Lancellotti combate a arquitetura hostil. Crédito: Reprodução do Instagram.

Um exemplo desse tipo de artifício foi criado pela Prefeitura de São Paulo embaixo de um viaduto no bairro do Tatuapé, na zona Leste da capital. O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral Povo da Rua, em protesto, quebrou as pedras colocadas pelo poder público a marretadas, em fevereiro de 2021. A cena chamou a atenção da mídia nacional, mas o recurso contra a permanência dessas pessoas que não têm onde dormir nos locais públicos já vinha sendo usado há bastante tempo.

Por causa da atitude do sacerdote, a nova lei que tenta combater esses instrumentos de segregação ganhou o nome do padre. O texto de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES) altera o Estatuto das Cidades, tentando impedir a arquitetura hostil. O projeto tinha sido vetado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, mas seu veto foi derrubado, e a lei foi promulgada, recebendo o número de 14.489/2022. Não há, no entanto, punição prevista a prefeitos que resolverem desobedecê-la.

Na cidade do Rio de Janeiro, a arquitetura hostil vai se proliferando à medida que aumenta o número de pessoas vivendo nas ruas, em virtude do alto desemprego e da falta de políticas públicas adequadas de acolhimento. Pedregulhos são encontrados debaixo do viaduto Engenheiro Noronha, em Laranjeiras. Na Cidade Nova, nos canteiros da Avenida Presidente Vargas, há também lascas de pedras para ninguém deitar no lugar. Contando o arame farpado e cacos de vidro sobre os muros, além de grades por todos os lados, a paisagem carioca vai ficando cada vez mais feia.

Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), afirma que a polêmica em torno da arquitetura hostil não significa uma concordância com a ocupação dos locais públicos por moradores de rua. O debate se faz necessário para que as autoridades deem o tratamento adequado ao problema, sem construir uma paisagem agressiva a todos os moradores das cidades.

O problema precisa ser enfrentado nas suas causas. Temos que aprimorar as políticas de acolhimento, atendimento à saúde, capacitação e geração de emprego para essas pessoas.  O recurso demonstra hostilidade com as pessoas e com todos que utilizam o espaço púbico, que é a essência da cidade”, explica o professor.

Segundo ele, a pandemia agravou os problemas sociais, o que tende a aumentar o número de pessoas em situação de vulnerabilidade. Muitos foram despejados ou tiveram que sair de suas casas por falta de condições de pagar o aluguel. 

A arquiteta e urbanista Maíra Mattos, conselheira federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, também condena o emprego desses recursos hostis na paisagem urbana. Para ela, os espaços públicos deveriam ser aprimorados para o estímulo à convivência entre as pessoas, com arte, paisagismo e atividades culturais. Bons exemplos não faltam no mundo inteiro de bom aproveitamento e revitalização de espaços degradados. Na própria cidade do Rio, o Viaduto Negrão de Lima, em Madureira, abriga um baile de charme, que já é tradicional da zona Norte da cidade. 

“Entendemos que o espaço é para ser usado e apropriado. Locais embaixo de viadutos podem ser utilizados para feiras, bailes, academias para a terceira idade, brinquedos, arte, paisagismo e abrigar a convivência e a diversidade”, afirma a arquiteta.

Cabe agora à sociedade civil fiscalizar o cumprimento da lei. Sem ter como hostilizar a população de rua com esse tipo de recurso, é possível que as autoridades comecem a adotar políticas efetivas de combate à pobreza. 

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