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Os caminhos calçados de travessia da Serra do Mar no Brasil Colônia e Império: construção e pavimentação

Os caminhos calçados de travessia da Serra do Mar no Brasil Colônia e Império: construção e pavimentação
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As estradas brasileiras no Período Colonial e no Império não eram pavimentadas, a não ser em trechos restritos e de curta extensão, como acessos íngremes de serra. Nas travessias da Serra do Mar, entre São Paulo e Rio de Janeiro (Figura 1), são conhecidos pelo menos oito trechos calçados  ainda preservados, totalizando cerca de 50km (Tupinambá et al. 2016). Nos trechos preservados o calçamento utilizava rochas de jazidas próximas, sendo a disponibilidade do material condicionada à diversidade geológica local. Para a conservação destes sítios é necessário caracterizar pedras e localizar jazidas utilizadas, atividade que a equipe do projeto de extensão Caminhos Geológicos na UERJ realiza há alguns anos.

Os caminhos calçados de travessia da Serra do Mar no Brasil Colônia e Império: construção e pavimentação fig 1

Figura 1. Trechos calçados de subida da Serra do Mar entre Santos e Rio de Janeiro: 1 – Calçada do Lorena, Cubatão, SP (1792); 2 – Caminho do Ouro, Paraty, RJ, 1702; 3 – Trilha do Ouro, Angra dos Reis, RJ, sec. XVIII e XIX;
4– Estrada Imperial, Mangaratiba,RJ, 1854; 5 – Serra da Calçada, Itaguaí,RJ, 1702; 6 – Estrada do Comércio, Nova Iguaçu, RJ, 1824; 7 – Calçada de Pedra e
8 – Estrada da Taquara, Petrópolis, RJ, 1809. Fonte: Tupinambá, M. et al. 2016. Geonomos, 24(2), 257-263.

As estradas, ou caminhos, foram abertos e pavimentados nos séculos XVIII e XIX entre o período colonial e imperial da história brasileira. As técnicas construtivas e de pavimentação utilizadas nos trechos íngremes, florestados e instáveis da Serra do Mar representaram grandes obras de engenharia à época. Como exemplos de projetos inovadores iremos considerar a mais antiga e a mais nova destas estradas, a Calçada do Lorena, de 1790 e a Estrada Imperial, de 1857 (Figura 2). 

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Figura 2a: Curva em trecho de subida da Calçada do Lorena. Fonte: Lorena Johannis Michail Moudatsos
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Figura 2b: Parapeitos em pedra seca e restos da base do pavimento da Estrada Imperial. Fonte: o Autor

A Calçada do Lorena, em Cubatão (SP), foi construída e pavimentada ao fim do século XVIII, sendo governador da Capitania de São Paulo Bernardo José Maria de Lorena. João da Costa Ferreira, formado pela Real Academia Militar e responsável pela construção, possuía extensa lista de projetos civis executados em Lisboa, Coimbra e outras cidades de Portugal, incluindo edificações, construções de cais e retificações de leitos de rios. Foi enviado ao Brasil em 1788 durante o reinado de D. Maria I e alocado no Real Corpo de Engenheiros, onde seguiu carreira até o posto de brigadeiro. Além da Calçada do Lorena, realizou obras públicas e levantamentos cartográficos relevantes da costa e do interior paulista e paranaense.  

Até 1781 a ligação entre a sede da Capitania de São Paulo e o porto de Santos era feito por uma trilha intransitável em época de chuvas, pouco evoluída em relação à trilha indígena original. Entre 1786 e 1788 foi construído o Aterro do Cubatão, que facilitou o acesso entre a costa e a base da Serra da Paranapiacaba. Neste período foi mantida uma estreita estrada de subida da serra, não calçada e com péssimas condições. É possível que a Calçada do Lorena estivesse pronta até setembro de 1790, conforme consta em carta da Câmara Municipal da Cidade de São Paulo que comprimenta Lorena pelo “calçamento da Serra mais bravia intranzitável” (Toledo, 1981). 

O traçado do caminho evita a passagem por cursos d´água e atoleiros, seguindo pelas cristas de divisores de bacias hidrográficas. Para evitar o forte declive foram construídas numerosas curvas de pequena amplitude. Na observação local dos trechos preservados, Toledo (1981) descreveu um pavimento com  largura média do pavimento, ladeado por cortes em taludes naturais com até 5m de altura e muros de arrimo em pedra seca com até 1,80 m de altura. O leito é calçado por pedras talhadas com até 20cm de espessura organizadas em faixas paralelas, apresenta bordas levantadas em 15cm em relação ao eixo central e base em pedra miúda e saibro com cerca de 10cm de espessura (Figura 3).

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Cortes em taludes naturais, muro de arrimo e detalhes do pavimento da Calçada do Lorena. Croquis elaborados por Toledo (1981)
Os caminhos calçados de travessia da Serra do Mar no Brasil Colônia e Império: construção e pavimentação figura3b calcadas
Cortes em taludes naturais, muro de arrimo e detalhes do pavimento da Calçada do Lorena. Croquis elaborados por Toledo (1981)

O acesso aos trechos preservados é feito pela Rodovia Caminho do Mar (SP-128) entre Cubatão e o alto da Serra do Mar. A rodovia cruza com a Calçada do Lorena no Monumento do Pico, no Padrão do Lorena e no Belvedere Circular. Após tentativas de restauração do conjunto arquitetônico e arqueológico da Calçada do Lorena e caminhos posteriores, em 1994 foi inaugurado no local o Parque Caminhos do Mar, através da Eletropaulo. O Caminho do Mar, incluindo a pavimentação em concreto e seus monumentos, encontra-se em bom estado de conservação na rodovia SP-128, e alguns trechos da Calçada do Lorena que cruzam o Caminho do Mar foram restaurados e estão conservados, podendo ser percorridos a pé com facilidade.

A Estrada Imperial em Mangatiba (RJ) foi finalizada em 1857 com sofisticado sistema de drenagem, contenção de encostas e pavimentação. Motivada pela expansão da indústria do café, a estrada ligava o vale Paraíba ao litoral sul fluminense, atravessando suavemente a Serra do Mar pelo vale do Rio do Saco. A fase inicial de construção foi abortada e é conhecida como Estrada do Atalho, sendo utilizada como alternativa de subida da serra por pedestres.

Na pavimentação da estrada Imperial foi utilizada base em pedra e cobertura com pedras miúdas de macadame, moderna técnica da época (Soares, 1861). A inovação foi além da aplicação direta do macacame. Foram feitas adaptações às condições climáticas locais, de acordo com preceitos de Thomas Telford (com uso de camadas superpostas de pedras maiores na base) adicionando um  estrato final de grânulos de rocha e uma camada de argila compactada com rolo compressor para facilitar a rodagem (Almeida & Oliveira 2022).

No trecho de subida de serra (Fig. 3a, b), com cerca de 6,5 km e sete metros de largura, foram feitos 69 cortes em solo e rocha, 60 bueiros e três pontes em arco (Soares, 1861). Além disso, foram construídos em pedra seca parapeitos, muros de contenção, e bueiros. De acordo com Almeida & Oliveira (2022) parapeitos de pedra  com 60 cmx 90 cm acompanham toda a extensão da estrada; muros de arrimos chegam a ter 14m de altura por 700m de comprimento; a drenagem é feita por bueiros e calhas laterais, e no trecho de cachoeira foi construída uma calha em pedra com cerca de 1000m de extensão.  

A investigação de materiais e técnicas utilizadas em estradas antigas é prazeirosa e instigadora. Há sempre um caminho perdido esperando para ser descoberto e detalhado. Em meio à floresta tropical úmida, trechos incrivelmente preservados, com muros de contenção e pavimentos de pedra conservados em meio a médias anuais de precipitação de mais de 1.000 mm de chuva estão esperando para serem percorridos (Figura 4). Basta vestir um bom calçado e ter disposição. 

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Figura 4: Calçada de Pedra em Magé-Teresópolis (RJ). Fonte: Felipe Rodrigues Waldherr

Referências Bibliográficas

Almeida, S.; Oliveira, S. 2022. Origem, evolução e elementos construtivos da Estrada de Mangaratiba, primeira estrada de rodagem do Brasil. Anais do Museu Paulista, 30: 1-36.

Soares, S. F. Histórico da Companhia Industrial da Estrada de Mangaratiba e Analyse Critica e Econômica dos negócios desta companhia. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1861. 

Toledo, B. L. 1981. O Real Corpo de Engenheiros na Capitania de São Paulo, destacando-se a obra do brigadeiro João da Costa Ferreira. São Paulo. João Fortes Engenharia. 178 p. 

Tupinambá, M.; Waldherr, F. R.; Moure, H.; Tupinambá, A.; Vaz, O. R. 2016 . As pedras dos trechos calçados das estradas coloniais e imperiais do sudeste do Brasil. et al. 2016. Geonomos, 24(2), 257-263.

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SOBRE O AUTOR

Miguel Tupinambá

Miguel Tupinambá

Bio: Professor da Faculdade de Geologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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